terça-feira, 29 de junho de 2010

MISCIGENAÇÃO


Meu coração um tanto lusitano,
Brasileiro da gema, atordoado,
Bate em meu peito alegre e soberano,
Estala na garganta em triste fado.

Meu coração, eterno inconformado
Com a escravidão imposta ao africano.
Às vezes mui devoto ou mui profano,
Vendo o índio no lar desbaratado.

A cada instante, um “eu” minha alma aflora,
Às vezes, noite escura; outras, aurora;
Às vezes, sou profundo ou pueril.

Às vezes, sou faminto ou bonançoso,
Sou desespero, sou esperançoso,
Meu coração retrato do Brasil.

O COQUEIRO


Coqueiro que habita no nordeste,
Com seus verdes pendões, engalanado,
A balançar no vento saturado,
De sal e brisa e sol ele se veste.

De verde ou amarelo, ele enfeitado
Enfrenta com coragem inconteste
Todo o rigor da seca no agreste,
Lição de vida sobre o assinalado.

Não são as rosas, com tanta lembrança,
que carrego do tempo de criança,
mas tuas palmas, grande companheiro!

As hastes que, apontando o infinito,
Cheias de verde, mostram o erudito
Que fez minha alma como a de um coqueiro.

O REVERSO DA MEDALHA


Em primeiro lugar, o anel perdido,
Junto com a bela máscara no rosto;
A pose altiva, ríspida e o gosto
De humilhar o fraco e o oprimido.

Foi bem antes que o sol se houvesse posto;
Seu reinado ruiu empobrecido.
Qual cego rei que, mui envelhecido,
Vê, pelo filho, o império ser deposto.

Sim, primeiro os anéis, depois os dedos;
Esquecendo do mundo, eis os segredos
Que a vida cobra a quem vive sem dó.

Depois, ora, depois apenas sombra
De um catre carcomido que era alfombra,
De um arremedo de homem que era pó.

A UM AMIGO


Tu não viste brotar em tua estrada
O flamboyant vistoso, engalanado
Com pétalas vermelhas adornado,
No teu breve viver, triste jornada.

Tu não notaste as aves em revoada,
Velozes no infinito constelado,
Em noturno volteio assombrado,
Pousando melancólicas na enseada.

O mesmo céu de ontem é o de agora?
A mesma busca eu sei que continua.
O que ficou de ti neste recanto?

Doce lembrança sinto nesta hora,
Nesta paisagem terna à luz da lua,
Neste soneto triste que é meu canto.

O MOMENTO


Ó momento fugaz que insiste e abrasa,
Escreve a tinta-sangue este momento
- Que instante febril, que golpe de asa! -
E transmuda o viver em um lamento.

Em nosso pensamento faz tua casa,
Aumenta e engorda com este alimento.
De minuto a minuto, o adiamento
De esta ardência que célere me arrasa.

Estala o dedo, pronto, foi-se a aurora,
Que não demora, amigo, não demora.
Diz a ti mesmo:que instante fugaz!

Entretanto - observa o pensamento -,
É o momento que cria o outro momento.
E assim encontrarás a luz e a paz.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

O PREÇO


Ouço passos distantes do passado
Que, mesmo no clarão de um belo dia,
Fazem pensar no que já foi pensado,
Apagam chama que há tanto ardia.

Ouço estes passos sempre, nostalgia,
É triste rastro, enfim, por mim traçado;
Família, amigo, amor, tempo dourado,
Ausentes todos, tornam ao meu dia.

E minha casa sempre está repleta
De vultos, de perfume e de adereço.
Às vezes choro e rio; pra ser franco,

Mesmo vazia, a casa está completa.
Eis o preço das rugas, este é o preço
Que o tempo cobra ao meu cabelo branco!